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Imagem: Saul Landell

Era uma vez homem que sempre existiu, tendo entrado pela tangente na própria vida sem precisar nunca ter nascido. Dizia ele ter a mesma idade do mundo, sobrando para especulatórias teorias que precisassem o inexato e distante momento que em ele se aconteceu. “Somente o tempo me deu autoridades de existir” ria-se, “graduei-me gente desavisado das idades. As memórias dos outros foram os lençóis que me deitei, os sonhos alheios foram os frutos que comi. De mim não sei, o que sei é apenas o que os outros me contaram”. E dessabido do seu próprio nascimento, não lhe sobrava espaço para carregar a própria morte. “Só morre quem nasce e quem não nasce não pode morrer.” Mas não se sentia afortunado por isso, era antes um condenado aos estáticos eternos. Ainda que sua presença atiçasse adormecidas sementes e iluminasse os escuros, nada servia por quase nada sentir. “Planejamos demais a vida e a perdemos entre nossos ensaios. Eu não previ nem planejei e por isso ainda a tenho inteira. E de improviso entre as dores sem saber morrer, mais as perdi do que as ganhei, sobrando-me menos do que o contrário. Pelos vazios que colecionei, descompareci para as tristezas, desapareci para os tormentos do viver. Sou ausente nos compromissos que nos pedem os sofrimentos, mas também as alegrias. Tudo isto porque sempre vivo e nunca morro!” Sofria o pobre homem por nada sofrer. Um dia, apareceu-lhe num copo de cachaça a voz da sua consciência: “o que sabes da felicidade?” Não sabia o que responder. Desatinou em infinitas constatações. Talvez sabendo o que fosse sofrimento, saberia o que é ser feliz, porque sem também saber da felicidade, sabia, de nada saberia da vida. O que adiantava se manter mergulhado mas não poder respirar, falar de boca cheia sem saber gosto? A tristeza é condição para a felicidade, e vice-versa. Uma não caminha sem a outra; são irmãs que nos visitam com regularidade, em que a primeira entra quando a segunda se retira. E não lhe sobrando outras certezas, implorou por um milagre. Seu milagre era sua morte. E a vida assim lhe concedeu. Meses depois morreu de amor, para renascer num amanhã qualquer mais homem e mais vivo por aí. Descobriu que por ser mortal cabem-nos infinitas vidas, com seus doces e seus amargos. Melhor do que uma inteira sem sal.

Guilherme Antunes